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VI

Um, outro, outros confidenciam que tiveram Simone. Que ela os amava, só a eles e a mais ninguém. Ela mesmo lhes havía dito que era só deles, exclusiva.
Apetece-me gritar-lhes que é tudo mentira, que só a mim ela disse que amava, que só a mim dedicava essa exclusividade de que tanto se gabam estes palermas.
Mas não digo nada.
No fundo, sei que ela me disse o que disse a todos quantos estão aqui. E não mentiu. Amou-nos a todos na sua forma peculiar de ser e isso torna-a verdadeira e original.
Simone não foi mulher de um homem. Não é. Ainda que morta e enterrada sei-a viva no que lhe sinto, no que consigo ouvir da sua boca como um segredo fantástico.
- Sabes que te amo?
Eu não dizía nada, sentía-me tonto, o estomago a dar uma volta, quería encontrar palavras bonitas e únicas para lhe responder, qualquer coisa que lhe desse a entender que o que estava a acontecer era sublime e inabalável.
Nunca lhe respondi das vezes que me disse que me amava. Quando ficava sózinho ensaiava a resposta adequada a tão grande pergunta, uma parvoíce, na altura própria voltava a calar-me.
- Tu sabes que te amo, não sabes?!
Retóricas. Ela sabía. Se sabía.
Por isso não digo nada, deixo-os anestesiarem-se nessa doce frase que ela repetiu a todos nós. Todos nós lhe devemos isso pelo tanto de amor que nos deu.

V

Não há bebedeira sem promessa. Ou sem choro, mesmo que verta por dentro à mistura com o alcool. Também não a há se não houver a gargalhada despropositada, aquela que soa mais alto que todos os outros ruídos e nos atrai aos olhares de terceiros que nos condenam no acto a um purgatório seco onde não pinga uma gota, nem de água sequer.
Estou na fase da promessa.
Já vomitei o excesso e o fundo que reside no meu organismo é a réstia de consciência que me leva a prometer não voltar a beber desta maneira.
Nunca ouvi da boca de Simone estas promessas. Bebía como uma esponja quando era dia de beber como uma esponja, embebedava-se e quase tranquilamente entregava o corpo mole a quem estivesse com ela nesse momento. Sem exigências, sem queixas, sem pedir desculpa. Não prometía a ninguém que da próxima não havería próxima ou não voltaría a encharcar-se até perder a alma do corpo.

Estive com ela muitas vezes nesses momentos.

Tantas que aprendi que o que nos deixava alcançar era sempre e só o corpo. Da alma ela sempre manteve o pulso forte para nós não a tocarmos.

Estou pronto para mais uma rodada.

IV

Boa, agora alguém se lembrou de começar a cantar.
Quem é que teve a triste idéia de começar com a cantoria? Ainda bem que a dor de cabeça me passou. Ou não, já não sei, sinto a cara dormente, as mãos dormentes, não tenho a certeza se sou eu que agarro o copo de cerveja ou se ordeno a um braço suplementar que se estique e apanhe o copo até à minha boca.
Estou bebedo.
- Podem parar com a merda das canções? Simone odeia isso! Se ela entrar e vos ouvir...
Pararam. Ainda bem. Sempre ouvi dizer que quando um morto vai a enterrar não se deve cantar, é falta de respeito ou qualquer coisa assim parecida. Ou então é só o medo do defunto despertar com a cantoria e levantar-se do caixão. Até pode ser que apareça no mundo dos vivos, já todo comido, sem alguns pedaços.
Agora que penso nisto, nunca percebi porque é que ela não gostava de música. Assim que alguém se punha a trautear uma melodia, um assobio fraquinho a entoar uma canção ela pedía para se calarem. Ficava visivelmente preocupada, por vezes com uma raiva tal que gritava até conseguir silenciar quem cantava.
Mas houve uma vez, eu lembro-me que ela cantou, baixinho, muito baixinho, a dizer umas palavrinhas soltas e depois um som velado, apertado entre os lábios como se fosse uma distracção. Foram apenas uns segundos, nem se apercebeu que eu a escutava.
Toda a gente gosta de música e Simone era uma mulher cheia de vida, de alegria, de barulho: Porquê então?
Perdi a oportunidade para o saber, agora é impossível. E tenho a certeza que da malta também ninguém sabe. Ela falava muito mas contava pouco. Pelo menos para a geral. Nem mesmo quando tomava aquelas bebedeiras monumentais em que tínhamos de a levar a casa, despi-la, muitas vezes aguentar-lhe o vomitado. E depois deitá-la como uma perfeita criança.
A vida de Simone dava para fazer um fado.
Só não consigo perceber porque raio eu gostava tanto dela. Gosto. Com tantos defeitos é impossível gostar de uma mulher assim.
Mais um brinde!

III

O bar de sempre de fim de tarde. Onde habitualmente expiamos os pequeninos pecados que levámos adiante pela esperteza do dia e ainda nos achamos mais ladinos por acharmos que não fomos descobertos.
Que desperdicio.
Nada vai mudar. Nem mesmo que todos juntos façamos muita força e num desejo comum e esotérico nos convençamos que é quanto basta para que Simone volte, nem de olhos fechados a lembrar-lhe as maluqueiras ou os acessos de raiva ou no silêncio escorrido da imperial se recorde o quanto era bela nua.
Acho que não há ninguém aqui neste bar que não se tenha deitado com ela... Deitado mesmo, não é fornicar, é deitar e dormir, enroscado, abraçado, agarrado à sua barriga para que ela não fugisse a meio desses momentos que parecíam sempre tão curtos.
O lugar dela na ponta do balcão, virada para a porta, as costas resguardadas pela parede amarelecida pelo fumo, à esquerda as casas de banho com o chão de mármore, o lavatório de mármore, tudo baço, muitos anos de mijo pingado a corroer a pedra.
Quando olho para o balcão vejo-a. Quase que consigo ouvir o barulhinho que as meias pretas dela fazíam quando traçava e destraçava a perna.
- São de seda, são meias que sabem a Traviatta de cor e salteado.
- Não me faças rir Simone! De seda?!
- Sim, de seda! Da mais pura seda fabricada por mil e mais mil bichinhos... sinto-lhes o formigueiro nos tornozelos, nas coxas... Não os ouves?
A essa altura eu ouvía qualquer coisa desde que fosse dito por ela. Como é que ela conseguía prender-me a atenção é que nunca descobri.
Um brinde.
Porque não? Levanto o meu copo a Simone, no meio do da malta, todos presas dela, no fundo nós éramos os bichinhos dela, os seus animaizinhos amestrados. E gostávamos. E sentíamos ciúme quando ela dava mais conversa a um que a outro.
Onde será que estás agora Simone?
Sem ser naquele sitio horrível e escuro, não posso acreditar que te enterraram, te deixaste fechar num caixão sem dares luta, no minimo umas arranhadelas ao coveiro, ao Padre.
O teu sitio no balcão está vazio, é teu, está à tua espera, espero que vejas que já bebi muita cerveja em tua honra, em teu nome e por mais não sei quantos brindes que todos já fizémos para nos desculpar da bebedeira que todos temos de apanhar.
É obrigatório que entremos em coma alcoólico, imprescindível para que possamos saír deste bar com vida e sem ti.

II

Alguém falou em irmos tomar um copo. Tipo, um brinde à memória de Simone. Não sei se deva ir, estou com uma dor de cabeça de estalar e afinal já acabou tudo, brindes, brindes para quê?
Mas não quero ser um chato nem desmancha-prazeres e todos os que querem ir conhecíam-na bem. Não vão cumprir nenhuma tradição nem fazer mais ou alguma coisa diferente do que fizeram quando ela estava viva.
Claro que ninguém a conhece como eu. Conhecía. Nunca me vou habituar à idéia de que já não vai voltar. Que merda.
Talvez não deva ir, vou acabar por me atrapalhar quando se falar dela, é lógico que acabemos a falar dela e muito provavelmente de uma maneira triste fazendo-a parecer sórdida através do alcool que já tivermos ingerido, alguns hão-de chorar.
Eu hei-de escapar-me para a casa-de-banho se sentir que vou chegar a esse extremo. Ela detestava gente chorona, de uma forma ou de outra achava-os ridiculos e fracos e algumas vezes assisti a uma satirização cruel das suas vitimas nos seus piores momentos.
Ou melhores, agora já não sei.
Acho que deixei de saber de tudo.
Achamos que tudo está controlado, garantido, previsível e de um momento para o outro... Simone morre. Puf! Como um ar que não se vê.
Merda.
Acho que preciso mesmo de um copo para me animar.
Mas não vou falar de Simone, limito-me a ouvi-los e a abanar a cabeça. Mesmo que digam coisas que não sejam verdade não vou desmenti-los.
A verdade sei-a eu, ninguém sabe de Simone como eu.

I

Detesto funerais. Sempre detestei. Não sei se foi porque em criança me mantiveram fora deste ritual. Ao mesmo tempo já naquela altura, apercebía-me que havía qualquer coisa de doloroso ou até de horrível nos funerais, vía as pessoas a regressarem a chorar, não se podía fazer barulho, falar alto, ver televisão, tudo era doentio.
Detesto funerais.
Sinto-me mal. Tanto tenho calor e me sinto a sufocar com a gravata apertada à volta do pescoço como o corpo fica arrepiado e suo frio, um quase estado febril e delirante. É por isso que nunca me aproximo dos caixões, dá-me um nó no estômago, fico receoso que o morto se erga e me agarre para me levar com ele.
Mas a este não podería deixar de vir.
Nem pensar.
Porque ela merece que aqui esteja, a sério. E também de alguma forma assim me consiga convencer que acabou, que ela morreu mesmo, que não há mais, não vai aparecer depois de ter estado ausente sabe-se lá onde.
Não veio muita gente.
Ainda bem, tenho a certeza que ela prefere assim. Ou preferería. Não sei muito bem em que tempo verbal me deva pensar, é tudo tão estranho, se calhar ela não morreu e isto é o funeral de uma mulher qualquer que também se chama Simone.
Que estupidez!. É por estas loucuras que detesto enterros, fico numa ansiedade tão grande que nem sei onde estou, o espaço, o espaço perde-se entre os jazigos e as lápides e as manchas de flores, é tudo igual.
Claro que é tudo igual, estão mortos.
Simone está morta, morreu. Tenho de me convencer de uma vez por todas que isto é a vida, ela foi-se, morreu.
Vão fechar agora o caixão.
Não a vou voltar a ver. Gostava de ter tido coragem para a ver. Mais uma vez. Nunca vi um morto. Ainda bem que não a vi, deve estar com uma cor estranha e toda retalhada da autópsia, horrível.
Simone era linda. Linda. Era linda. Suponho que quando se é lindo em vida e depois se morre esse estado de beleza fica para todo o sempre mantendo-se... Afinal interrompe-se a beleza e vai-se para o outro mundo conforme se é actualmente.
Pronto, agora vai para o buraco e há-de lá ficar durante a noite. Simone tinha pavor do escuro, lembro-me que mo disse muitas vezes. Um trauma de infância.
Simone morreu. Se repetir muitas vezes convenço-me. Como um recado para não se esquecer. Como eu fazía em garoto quando ía à mercearia fazer recados à minha mãe.
No fundo acho que bastou que Simone nascesse para morrer. Sim, foi nesse dia que morreu.
Detesto funerais, ainda bem que já acabou.