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I

Detesto funerais. Sempre detestei. Não sei se foi porque em criança me mantiveram fora deste ritual. Ao mesmo tempo já naquela altura, apercebía-me que havía qualquer coisa de doloroso ou até de horrível nos funerais, vía as pessoas a regressarem a chorar, não se podía fazer barulho, falar alto, ver televisão, tudo era doentio.
Detesto funerais.
Sinto-me mal. Tanto tenho calor e me sinto a sufocar com a gravata apertada à volta do pescoço como o corpo fica arrepiado e suo frio, um quase estado febril e delirante. É por isso que nunca me aproximo dos caixões, dá-me um nó no estômago, fico receoso que o morto se erga e me agarre para me levar com ele.
Mas a este não podería deixar de vir.
Nem pensar.
Porque ela merece que aqui esteja, a sério. E também de alguma forma assim me consiga convencer que acabou, que ela morreu mesmo, que não há mais, não vai aparecer depois de ter estado ausente sabe-se lá onde.
Não veio muita gente.
Ainda bem, tenho a certeza que ela prefere assim. Ou preferería. Não sei muito bem em que tempo verbal me deva pensar, é tudo tão estranho, se calhar ela não morreu e isto é o funeral de uma mulher qualquer que também se chama Simone.
Que estupidez!. É por estas loucuras que detesto enterros, fico numa ansiedade tão grande que nem sei onde estou, o espaço, o espaço perde-se entre os jazigos e as lápides e as manchas de flores, é tudo igual.
Claro que é tudo igual, estão mortos.
Simone está morta, morreu. Tenho de me convencer de uma vez por todas que isto é a vida, ela foi-se, morreu.
Vão fechar agora o caixão.
Não a vou voltar a ver. Gostava de ter tido coragem para a ver. Mais uma vez. Nunca vi um morto. Ainda bem que não a vi, deve estar com uma cor estranha e toda retalhada da autópsia, horrível.
Simone era linda. Linda. Era linda. Suponho que quando se é lindo em vida e depois se morre esse estado de beleza fica para todo o sempre mantendo-se... Afinal interrompe-se a beleza e vai-se para o outro mundo conforme se é actualmente.
Pronto, agora vai para o buraco e há-de lá ficar durante a noite. Simone tinha pavor do escuro, lembro-me que mo disse muitas vezes. Um trauma de infância.
Simone morreu. Se repetir muitas vezes convenço-me. Como um recado para não se esquecer. Como eu fazía em garoto quando ía à mercearia fazer recados à minha mãe.
No fundo acho que bastou que Simone nascesse para morrer. Sim, foi nesse dia que morreu.
Detesto funerais, ainda bem que já acabou.

1 comentário:

augusto, um entre mil disse...

devias te-la visto no caixão. irias convencer-te facilmente de que estava mesmo morta.

depois, nas noites em que sonhasses com ela estariam os dois vivos e, seriam, talvez, felizes até o sonho durar.

é exactamente o mesmo de quando sonhamos acordados...